Vou começar contando como conheci Meu tio. Foi um daqueles casos de alguém que te indica um filme – no caso minha irmã – e aí um ano depois você decide assistir. Mas antes disso, numa daquelas mega promoções da Cosac Naify, dei de cara com o livro Meu tio e pensei: olha, que legal, aquele filme que não vi foi baseado num livro. Tá barato e parece bom. Comprei.
Aí depois que descobri que o livro foi baseado no filme. Acho que é a primeira vez que leio primeiro um livro que veio depois do filme. Acho que ficou confuso, ficou? Enfim, vamos lá porque quero falar várias coisas.
Meu tio conta a história de Gérard Arpel, um menino de 8 anos, e suas aventuras com seu tio, o Sr. Hullot. A família Arpel era muito chique e vivia em uma casa ultra moderna projetada pelo próprio Sr. Arpel, que era dono da Usina Plastac, uma fábrica de tubos de plástico. A casa quase que fazia tudo sozinha, pra cada coisa existia um botão, portas que se abriam sozinhas, braços mecânicos pra pegar e guardar coisas, e uma fonte no formato de peixe que era o orgulho do casal. A Sra. Arpel tinha um amor incondicional pela casa e dedicava 100% do seu tempo a ela.
Apesar de todo o conforto, Gérard achava tudo meio chato, não podia brincar, não podia se sujar e tinha que seguir várias regras dentro de casa. E então acabou encontrando liberdade e diversão com seu tio, irmão de sua mãe. Sr. Hullot morava em um bairro diferente, perto de uma praça onde sempre acontecia a feira. O lugar era agitado, as pessoas conversavam na rua, os meninos brincavam e tudo parecia mais alegre e cheio de vida. Gérard era encantado por isso tudo e pelo jeito leve e despreocupado que seu tio levava a vida. Despreocupado até demais!
Meu tio Hullot me parecia, quando eu era criança, um personagem ao mesmo tempo próximo e distante, indiferente e caloroso. É difícil explicar, eu sei. (…) ele era bem alto e bem magro. Andava aos tropeços, meio curvado para a frente, e saía distribuindo cumprimentos sem motivo.
(…) Ele era perseguido por uma fatalidade que o mergulhava em todo tipo de problema. Não perdia a oportunidade de dar uma gafe, de fazer uma trapalhada, mas, pelo jeito como aceitava os golpes do acaso, impassível, impenetrável, sem nem franzir as sobrancelhas, sem reclamar, eu me perguntava de vez em quando se ele não provocava o incidente de propósito.”
Seguindo a ordem dos acontecimentos na minha vida, vou começar falando do livro. Ele foi escrito pelo Jean-Claude Carrière, um escritor e cineasta bem importante e que ainda está vivo, vale lembrar. Tem gente que acha sem graça, mas eu adoro um livro com ilustrações. Essas foram feitas pelo Pierre Étaix e só depois descobri que eram baseadas nas cenas do filme.
O que me fez gostar do livro – mais do que o filme – foi o fato de que ele é escrito em forma de uma lembrança. Gérard, já adulto, relembra as aventuras que viveu com seu tio, então ali tem um tom nostálgico e até um pouco triste que me agradou e pareceu bem perto da nossa realidade. É engraçado porque às vezes tenho a impressão de que a gente romantiza bastante nossas memórias e que provavelmente as coisas não foram assim como a gente imagina. Mas não importa. O que importa é o sentimento que ficou. Gérard tinha uma admiração enorme pelo seu tio e os lugares por onde passou com ele ficaram marcados de boas lembranças que só trazem um sentimento bom.
Acho que isso acontece com todos nós, não é mesmo?
No livro, o narrador é o menino Gérard, mas no filme a perspectiva é um pouco diferente. O filme, lançado em 58, foi dirigido e protagonizado pelo próprio Jacques Tati e tem todo um quê de comédia e teatro que acho que nunca vi em outro filme. Os cenários são muito teatrais e as atuações também e acho que parte da graça está aí.
A abordagem é diferente porque não há narrador, o que vemos é a história da família Arpel e as confusões do Sr. Hullot. Então ele perde um pouco o tom mais emotivo que tem no livro, mas continua bom, pode confiar!
Acho que o filme também enfatiza mais e faz uma certa crítica às tecnologias, aos gadgets e à toda a modernização da vida das pessoas. A relação do casal Arpel com a casa é um exagero e às superficialidades das relações que eles tem com outras pessoas é muito contrastante com o que o Sr. Hullot vive no seu bairro. As poucas tentativas que a família Arpel faz de integrar o tio ao mundo deles – por exemplo, colocá-lo para trabalhar na fábrica ou tentar juntá-lo com uma vizinha – são desastrosas. Não dá, a praia do tio Hullot é outra, mas ver tudo isso acontecer no filme é bem engraçado.
Meu objetivo não é fazer uma comparação pra ficar julgando aqui, longe de mim! Tanto o filme quanto o livro são ótimos, mas, pessoalmente, eu gostei mais do livro porque mexeu também com minhas próprias lembranças. E ambos são bem universais, fazem sentido pro público mais jovem e também pros mais velhos, então todo mundo sai ganhando!
Jacques Tati e seu personagem Sr. Hullot são bem conhecidos, mas foi a primeira vez que eu assisti/li algo deles. Se vocês não conhecem também, fica a recomendação! Vou deixar um trailer pra vocês visualizarem o clima da história!